Dedico esta história à expressão mais genuína de nosso ser
QUANDO A CIGARRA EMUDECEU
Todos
vocês conhecem bem a história da cigarra e da formiga. Mas, provavelmente, não
sabem o que aconteceu após o final dela. Pois, eu vou contar para vocês. Só
para relembrar a história que todo mundo conhece... Depois que a Formiga passou
o verão e o outono todo trabalhando e a Cigarra cantando sem parar, o inverno
chegou finalmente. Num frio intenso de um inverno aparentemente interminável, a
formiga tinha como se alimentar e a cigarra não tinha o que comer. Absorta em
suas canções e sem se preocupar com o futuro, a Cigarra esqueceu-se de estocar
o seu alimento e a formiga orgulhosa pode exibir a sua despensa repleta de
guloseimas. A Cigarra teve que pedir abrigo e alimento para a formiga. A Rainha
do formigueiro concordou desde que a cigarra concordasse em ofertar também o
seu trabalho. Assim, a cigarra cantou para as formigas que passaram o inverno
mais animado de suas vidas. É mais ou menos assim que termina a história que todo mundo conhece.
Depois disto, cabe à minha imaginação dar uma sequencia aos fatos.
No
meio daquelas formigas que assistiam felizes aos shows da cigarra Garrinha,
havia uma formiga chamada Serralha, muito invejosa e preguiçosa, bem diferente
das demais. O que ela mais queria era cantar como Garrinha, mas não tinha voz e
nenhuma técnica para isto. A única coisa que sabia fazer era serrar as folhas
que encontravam pelo caminho e estoca-las para prover-se de alimento no
inverno. A inveja faz com que queiramos punir o outro. E, a pior punição que
podemos dar ao outro é fazê-lo sentir-se culpado de alguma coisa. A culpa dói
mais do que qualquer ferida. Sabendo disto, Serralha arquitetou o seu plano
maquiavélico. A formiga invejosa faria Garrinha sentir-se culpada de ser ela
mesma, feliz e descontraída. Esperou o momento certo para fazer isto. Sabia que
a cigarra bateria à porta do formigueiro para pedir alimento e abrigo na
próxima estação de inverno. Estaria na portaria do formigueiro durante todo o
inverno para colocar em prática o seu plano maquiavélico. E, foi justamente
sito que aconteceu...
Garrinha,
morrendo de fome e de frio, bateu à porta do formigueiro para pedir, como em
todos os invernos, abrigo e alimento. Serralha, por sua vez, ofereceu à mesma
uma boa lição de moral.
- Sua preguiçosa,
agora você quer casa e comida... Você não tem vergonha na cara não?
- Mas, porque eu
haveria de ter vergonha na cara. Eu não fiz nada de errado! E, depois, não me
parece errado e nem mesmo vergonhoso pedir ajuda. Todos os anos eu faço isto e
recompenso vocês com a minha bela música. Respondeu Garrinha com delicadeza sem
compreender a severidade da formiga.
- Além de preguiçosa é
burra também. Ou será que és muito espertinha? Você quer me passar para trás
assim como você faz com todas as outras formigas todos os anos? A mim, você não
engana não. Berrou Serralha com uma voz estridente franzindo a testa, colocando
as mãozinhas na cintura e batendo seu pezinho direito no chão.
- Dona Formiga, eu não
estou entendendo nada! O que foi que eu fiz de errado. A senhora me parece tão
furiosa comigo. Daria para explicar melhor o que fiz?
- Ou o que deixou de
fazer, sua espertinha. Completou Serralha fechando seu semblante como os dias mais
cinzentos do inverno.
- Minha consciência
está tranquila! Não sei o que em mim desperta tanto ódio no seu coração. Pelo
visto, não posso contar coma a sua ajuda. Vou procurar outra formiga que possa
me ajudar.
- Porque você não
procura a sua turma? Perguntou com ironia a formiga maquiavélica.
- Porque todas as
cigarras estão assim como eu, precisando de ajuda neste momento. Não temos o
que oferecer agora a não ser o nosso canto.
- Mas, como bem sabe,
cantar não enche a barriga de ninguém e nem tampouco espanta o frio. Você
passou o verão e o outono errando e agora não quer pagar pelos seus erros. Você
e todas as cigarras deveriam morrer de fome e de frio para pagar todo mal que
causam ao nosso reino. Vou liderar um movimento para impedir as formigas de
ofertar ajuda a vocês neste momento. Somos formigas trabalhadeiras e não
formigas idiotas que passam a vida suando para encher a barriga de cigarras
preguiçosas.
A cigarra arregalou
seus olhinhos espantada com a crueldade da Formiga. Dentro da sua concepção de
vida, não conseguia compreender a irritação da mesma. Dedicou o seu canto ao
mundo e precisava agora que o mundo lhe dedicasse alimento e abrigo. O que tinha
de errado nisto? Pensava Garrinha tentando
entender a complexidade do mundo de Serralha.
Antes que pudesse pedir ajuda a outra
formiga mais amiga, surpreendeu-se com a atitude bélica formiga irritada. Sobre
o chão coberto de gelo escreveu protestos em tom de ordem:
- Abaixo a preguiça
das Cigarras cantadeiras!
Ainda não satisfeita, empunhou uma placa
confeccionada com uma folha seca e
congelada que repousava sobre o solo, onde os seguintes dizeres ordenava a
todas as formigas:
- Está terminantemente
proibido oferecer alimento e abrigo às Cigarras preguiçosas.
Até
então, ninguém havia percebido as Cigarras como seres preguiçosos. Eram vistas
como as cantoras que animavam a vida da bicharada. Querendo compreender melhor
aquela situação nova, as Formigas foram se achegando e formando em volta de
Serralha um grande círculo. Como se estivesse num comício, a formiga irritada
proferiu seu discurso moralista e acusador:
- Não sejam idiotas!
Passamos o verão todo trabalhando para alimentar estas cigarras preguiçosas? Vocês
acham justo desperdiçar o nosso suor? Que o nosso suor seja convertido em
benefícios para a nossa comunidade e não para a comunidade das cigarras preguiçosas.
Elas desejam nos explorar e fazer de nós suas escravas. Ficam no “bem bom”
enquanto nós trabalhamos sem cessar. Não vamos deixar que a preguiça das
Cigarras aumente o nosso sofrimento de ter que trabalhar, trabalhar e trabalhar
sem cessar.
Garrinha
foi se sentindo culpada ao ouvir tudo aquilo. Nunca pudera imaginar que um
comportamento tão normal para si e para a comunidade das cigarras pudesse
causar um sofrimento tão grande às formigas. Jamais desejou explorar ninguém,
muito menos a formigas que, tão amigavelmente, lhes ofereciam alimento e abrigo
todos os anos. A sua culpa aumentou ainda mais quando ouviu centenas de
formigas influenciadas pela formiga irritada gritando estridentemente:
- Abaixo as cigarras!
Abaixo as cigarras!
Algumas
Formigas fortemente influenciadas pela rebelião de Serralha passavam por ela e
entoavam frases de condenação:
- Que você possa pagar
por tudo aquilo que deixou de fazer!
- Se quiser alimento e
abrigo, que trabalhe!
- Vá cantar agora, sua
Cigarra preguiçosa!
Garrinha
não podia acreditar no que estava acontecendo. Parecia um pesadelo. Tomada por
um sentimento novo, nunca vivido antes, por uma dor no peito e pensamentos
desordenados que obscureciam a sua mente, desmaiou-se sobre o solo. As formigas
se afastaram sem oferecer nenhum tipo de ajuda. Tomadas pela raiva, não
pensavam racionalmente no que aquele comportamento de abandono poderia causar à
Cigarra. Mas, no meio de uma multidão levada pela paixão ou pelo ódio, pode
haver sempre um ser mais consciente e libertador. O anjo da guarda de Garrinha,
encarnado no corpo de uma formiga bondosa, tratou de carregar com dificuldade o
seu corpinho adormecido e sem forças para dentro de seus aposentos sem que as
outras formigas pudessem tomar conhecimento.
Cuidou da mesma com todo carinho até que a Garrinha pudesse estar
novamente apta a cantar.
Garrinha
recuperou-se fisicamente, mas manteve-se emocionalmente abalada. Sentindo-se
ainda culpada, resolveu organizar uma reunião com a comunidade das cigarras
para que pudessem planejar outra estratégia de vida capaz de protegê-las de
tamanho infortúnio. Não estavam dispostas a passar novamente por aquela
experiência constrangedora e desgastante o suficiente para colocar em risco a
própria vida e sobrevivência da espécie. Não seriam mais um peso para nenhuma
formiga e desejavam provar para todas elas que não eram cigarras preguiçosas.
Não podiam depender da boa vontade de outro ser para sobreviver. Resolveram trabalhar como as formigas para
prover as suas necessidades no inverno e não gastariam mais nenhum minuto do
dia com suas canções por mais belas que fossem. Mesmo que desejassem cantar,
estavam todas elas traumatizadas frente à mínima possibilidade de serem
novamente rejeitadas e humilhadas. O trauma vivenciado bloqueou a expressão
artística de todas elas. Um silêncio profundo tomou conta da alma de cada
cigarra que emudecida resolveu adotar o estilo de vida das formigas.
O
tempo foi passando e com ele cada estação. As formigas trabalhavam e as
cigarras numa intensidade ainda maior. Um
silêncio torturante foi tomando conta de cada formiga e de cada cigarra também.
Não havia mais a magia da música e o
efeito animador e terapêutico da mesma na vida dos seres daquela região. As formigas sentiam falta de alguma coisa em
suas vidas, mas não sabiam o que. Esta falta se transformou num grande vazio,
deixando-as sem energia para o trabalho. As
formigas outrora tão proativas e animadas transformaram-se em formigas
preguiçosas e sem energia para executar o que antes faziam com tanto
entusiasmo. O trabalho passou a ser uma obrigação chata e um grande estresse
tomou conta de todas elas. Estressadas, começaram a brigar entre si, o que
atrapalhava ainda mais a qualidade de trabalho de todas elas. Insatisfeita com
o desempenho de suas operárias, a Formiga Rainha promoveu uma reunião para
discutir o problema em questão sem ainda ter tomado conhecimento da rebelião
armada por Serralha no último inverno. Cercada por centenas de formigas
perguntou furiosa:
- O que está
acontecendo com todas vocês? Estão cada vez mais preguiçosas e ineficientes. Eu
não posso permitir este tipo de comportamento. O que está faltando a cada uma de vocês para se
tornarem competentes como antes?
As
Formigas se entreolharam cabisbaixas sem coragem de enfrentar a fúria da rainha
e sem coragem de admitir que cometeram um grande erro no passado. Anjinha, a
formiga acolhedora de Garrinha, pronunciou-se:
- Depois que as
Cigarras calaram o nosso trabalho perdeu o encanto. A melodia do canto delas
embalava o nosso entusiasmo e era, de certa forma, um bálsamo para a nossa
alma.
- Mas, por que as
cigarras pararam de cantar? O mundo não pode viver sem o trabalho destas
artistas maravilhosas. Elas precisam continuar cantando para todos nós. Por
acaso elas deixaram de receber os honorários de alimento e abrigo pagos pela
nossa comunidade no inverno? Perguntou a Rainha indignada desconhecendo toda
confusão causada no último inverno.
- Depois que foram
acusadas de preguiçosas e exploradoras resolveram trabalhar como todas nós e encerrar
a carreira de cantora. Justificou
Anjinha.
- Acusadas de preguiçosas!
Quem cometeu esta atrocidade contra elas?
Um
silêncio ainda maior tomou conta de todas as Formigas. Nenhuma delas teve a
coragem de assumir a responsabilidade pelo infortúnio causado às cigarras. No
meio de todas elas, Serralha deu um jeitinho de se esconder para não ser
acusada e ter que se responsabilizar pelos seus atos. Era boa de provocar culpa
no outro, mas muito incompetente para assumir a sua própria culpa.
Arrependimento era uma coisa que Serralha evitava a todo custo. Criava todas as
artimanhas emocionais para não entrar em contato com a sua responsabilidade
diante dos fatos. E, uma destas artimanhas era o viciante hábito de apontar
sempre o dedo para o outro.
Sem
respostas para sua pergunta, a Rainha pediu que trouxesse Garrinha até ela.
Garrinha era uma de suas cantoras prediletas e com certeza teria uma resposta
para lhe dar. Anjinha dirigiu-se a ela solicitando que comparecesse a uma
reunião coma Formiga Rainha. Trabalhando sem cessar, a cigarra respondeu:
- Avise à sua Rainha
que estamos ocupadas demais e sem tempo para ouvir mais acusações sobre o nosso
estilo de vida. Será que vocês não se dão por satisfeitas? Estamos também
incomodando com este nosso novo estilo de vida? Se ela quiser que venha até
nós. Precisamos trabalhar para ter como nos prover no inverno.
Anjinha
dirigiu-se à Rainha e passou o recado de Garrinha. A Rainha achou muito
estranho. O recado enviado por Garrinha parecia mais um discurso de Formiga do
que de uma Cigarra que vivia da arte. Ciente de que poderia ter algo estranho
nesta história, resolveu, por conta própria, procurar Garrinha. Ao encontra-la,
não acreditou no que viu. Furtada de sua alma artística, Garrinha parecia mais
uma Formiga operária. Surpresa, a Rainha indagou:
- O que deu em você,
Garrinha! Porque rompeu o acordo que a mãe natureza tratou com todos nós?
Sem
parar o seu ofício do momento e sem dar muita atenção à Rainha, Garrinha se limitou a perguntar confusa:
- Que acordo?
- Você canta e agente
trabalha assim como você está trabalhando agora. Seu trabalho é cantar, bem diferente do trabalho de todas nós,
formigas. Jamais conseguiremos executar este trabalho que vocês executam com tanta
maestria. Na natureza, o mais importante é respeitar a vocação de cada um.
Somos diferentes, temos talentos diferentes para equilibrar todo o sistema. O
equilíbrio nasce à partir destas diferenças que compõe a unidade do Todo.
-Seu discurso é muito bonito,
mas na prática não funciona na sua comunidade. As nossas diferenças não foram
respeitadas por vocês. Censurou Garrinha.
- Por nós? O que está
acontecendo? Por acaso, deixamos de cumprir o nosso acordo de alimento e
moradia no inverno?
- Não só deixaram,
como deixaram que morrêssemos de frio e de fome no último inverno. Se não fosse
pela bondade de Anjinha e de algumas formigas de bom coração como ela, já não
teria, aqui hoje, nenhuma cigarra para lhe contar esta história.
-Que
história é esta? Não estou entendendo nada! Por favor, me conte o que aconteceu
no ultimo inverno. Juro a você que desconheço estes fatos.
Garrinha
contou para a Rainha tudo que havia acontecido. Ela ficou estarrecida com a história
e muito aborrecida por não ter tomado conhecimento dos fatos. Desculpou-se para
Garrinha e prometeu punir todas as formigas envolvidas. Pediu que Garrinha voltasse a cantar, mas a
cigarra lamentou:
- Não conseguimos mais
cantar. Não sei o que aconteceu, mas a nossa expressão está totalmente
bloqueada.
- Vocês devem estar
traumatizadas. Além de acuadas, vocês se sentiram culpadas e ameaçadas. Acreditaram
nas maldosas acusações de Serralha. Vocês não podem ser manipuladas pela culpa
que esta formiga amarga e invejosa lhes atribuiu. A armadilha da culpa rouba a
nossa expressão. Vocês caíram direitinho na armadilha dela. Conjecturou a Rainha.
-Mas não sabemos o que
fazer para sair desta armadilha e soltar
a nossa voz. Acostumamos a trabalhar e perdemos o hábito de cantar. Acho que nem
sabemos como fazer isto mais. Estamos mudas para o canto. Lamentou Garrinha
enchendo seus olhinhos de lágrimas.
- Olhem para vocês! Vocês
não estão felizes. Parecem Formigas. Não há como ser feliz agindo como o outro.
As nossas ações devem ser genuínas, um reflexo de nossas motivações internas e
do brilho de nossa alma. Só a verdadeira consciência de saber quem somos e o
que fazemos pode nos libertar destas armadilhas. Recupere a sua essência que a sua voz há de
sair. Aconselhou a Rainha com sabedoria.
Garrinha
entendeu o recado da sábia Rainha e comprometeu-se a transmutar todos os sentimentos
ruins depositados por Serralha nas entranhas de seu ser. Pediu à Rainha que não
punisse Serralha e nem mesmo todas as Formigas envolvidas naquela rebelião
contra o canto. O perdão era a melhor medicação para todas elas. A própria vida se encarregou de mostrar a elas
o quanto dependiam do canto das cigarras para trabalharem com mais eficiência e
felicidade. Arrependidas, resolveram fazer aulas de canto com as cigarras.
Queriam levar o canto para dentro de seu próprio ser e compreender melhor este
universo tão diferente do seu. No entanto, descobriram como era complicado
cantar. Descobriram que cantar era um ofício muito difícil para elas; melhor
encara-lo apenas como um hobby.
Quanto
a Serralha, dedicou a sua vida a serrar folhinhas medicinais que pudessem
favorecer a qualidade de voz das cigarras. Fazia chás medicinais maravilhosos.
O perdão que lhe foi concedido lhe transformou numa verdadeira curandeira. Filas
de cigarras se formavam todos os dias na porta de seu consultório formigueiro
para uma consulta com a Dra Serralha – a curandeira das Cigarras roucas ou sem
voz.
Depois
que a transmutação aconteceu no coração de todas as formigas e cigarras,
ouviu-se, finalmente, um canto que saía do coração de todas elas levando ao mundo
uma mensagem de união.
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Diabólico Veneno
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